sábado, 12 de setembro de 2009

Acsínya

"Venha comigo. Ambos sabemos que você não tem para onde ir. Aqui fora está frio e em meu castelo há com certeza aposentos que lhe agradarão. Não tenha medo. De tudo o que já lhe aconteceu, seguir para meu castelo agora seria o menor de seus males, suba em meu carro."
Vencida pelos argumentos de um Homem que jamais vira na vida, Catarina subiu no carro, e em seguida o cocheiro disparou com seus cavalos velozes rumo às montanhas. Ali dentro era confortável, e no silêncio ela se fazia muitas perguntas... a noite continuava, com a grande lua reinante no céu com seu séqüito de súditas estrelas. Parecia já que estavam lá dentro há horas, apenas o barulho do correr dos cavalos e das rodas. "De onde aquele homem a conhecia? E por que quisera acolhê-la? Quereria ele realmente acolhe-la, ou se aproveitaria dela como tantos mais já o fizeram?" Não podia ver os olhos dele para saber o que se passava em si... dentro do carro apesar da luz da lua, não se podia divisar esses pequenos detalhes.
Faltava pouco para o amanhecer quando pararam diante de um grande castelo. O misterioso cavalheiro desceu e ajudou Acsínya a descer também. Levou-a , guiando-a castelo a dentro.

No quarto que lhe fora reservado, uma criada lhe aguardava, e numa banheira de porcelana, havia água quente e perfumada para banhar-se. Depois de livrar-se dos farrapos que trajava, tomou demorado banho, e com ajuda da criada, lavou os bastos cabelos encaracolados. Uma lareira acesa garantia que o quarto se mantivesse aquecido. Seguido ao banho, tomou uma espécie de sopa e vestindo uma elegante camisola, entregou-se a um sono pesado e sem sonhos, mesmo com o sol já a vista lá fora.
Ao despertar, percebera que dormira por todo o dia, pois a noite já caía. E antes mesmo que pudesse pensar surgiu novamente a criada, trazendo nos braços um luxuoso vestido. E desempenhando mais uma vez o seu papel, ajudou sua ama a vestir-se e pentear-se, ficando pronta para o jantar.
"O Senhor a aguarda para o jantar". Essa fora a primeira vez que ouviu a voz da criada, que desde o primeiro momento não falara coisa alguma. E seguindo a criada por um labirinto de corredores e escadas, chegou à uma imensa sala de jantar.
Nas paredes haviam grandes espelhos suspendidos, onde Catarina viu sua própria imagem, como há muito não via... parecia a mesma jovem de tantos anos atrás, mas seu olhar agora carregava grandes mágoas, e seus lábios estavam crispados pelas desventuras que lhe haviam podado as alegrias da vida...num leve sacudir de cabeça espantou as lembranças, e sentou-se no lugar que lhe fora indicado.




O jantar seguiu-se silencioso. Catarina comportava-se de maneira impecável, apesar dos anos longe das normas de educação em que fora criada. Em sua cabeça raios de pensamento a deixavam inquieta, porém, aprendeu a não deixar-se traduzir por seu rosto. Manteve-se impassível, até que, deixada a sala de jantar, seguiram para um confortável cômodo, sentando-se numa poltrona perto da lareira, aceitou um cálice de licor servido por seu misterioso anfitrião, e esperou que ele então se acomoda-se na poltrona logo a sua frente.
_O que deseja de mim senhor...?
_Perdão, não apresentei-me ainda, sou Demétrius Corzzine.
_ Então Senhor Corzzine, o que deseja de mim?
_ Para uma pergunta simples, uma resposta simples: Desejo que trabalhe para mim.
_ O que? No que me deseja empregar? Mas antes, responda-me, Senhor Corzzini, De onde me conhece? Qual sua intenção ao tirar-me da miséria em que me encontrava?
_ Perguntas pertinentes... Catarina Damachio, Conheço você e sua história há algum tempo, e lhe venho estudando os passos... como sei também que estamos muito longe de sua terra natal, conheço sua história de perseguições... seu destino não lhe tem sido muito generoso, não é mesmo? Digamos que... estou disposto a dar-lhe a oportunidade de vingar-se de todos os que contribuíram para sua derrocada... mas, como já deve sabê-lo, há um preço a pagar por minha ajuda.
_...
_ Ora, não me olhe desta maneira. Sou o primeiro em anos a lhe oferecer algo aceitável.
_ Ainda não sei se sua proposta me parecerá aceitável.
_ Garanto que não é nada que você tenha visto... Mas para que me compreenda terei de lhe contar algumas coisas. Senhorita Damachio, sou um homem de muitas posses... de muitas conquistas... e tenho a visão de aumentar meu poder... porém, tenho muitos inimigos à minha espreita, a me preparar armadilhas, a esperar qualquer deslize meu. E ainda existem aqueles que tramam minha destruição definitiva... Não posso simplesmente dar cabo deles, como deve estar pensando agora, que me seria fácil faze-lo. No mundo em que existo, assim como você o sabe pois já o freqüentou por muito tempo, as aparências e a falsidade são o que nos sustenta. Meus inimigos me sorriem e me cumprimentam com um "vida longa", quando em seu íntimo estão a desejar meu sangue em cálices de ouro...

_ E que tenho haver com isso?
_ Você liquidará com meus inimigos. Não se espante. Ambos sabemos do que é capaz. Quem desconfiaria de tão bela figura?
_ Mas eu... eu...
_ Até agora sempre agiu para defender-se... e creio que nem você mesma saiba do monstro perspicaz e sanguinolento que divide seu corpo com sua alma... racional e friamente assassino... nunca se perguntou o que acontecia com você nos seus lapsos de memória? Numa manhã qualquer acordar suja e quase sem roupa, com as unhas em sangue, e em outra acordar sob os cuidados de um grande senhor para com a sua mais perfeita e favorita concubina? A morte parece se arrastar ao seu lado... parece lhe perseguir o encalço, de modo exato, preciso.
_...
_ Pois lhe digo, que a morte, nada mais é além de você mesma.
_ Infelizmente não sei como ajudá-lo. E o que ouvi até agora, Senhor Corzzini, não me parece ser mais que ficção. Suas intenções não se fizeram claras até agora.
Catarina sentia seu corpo enregelar, e enfiava as unhas com força no braço da poltrona. Imagens estranhamente familiares bailavam diante de seus olhos... Com grande esforço, levantou-se.

_ E para onde pensa em ir agora? Não tem lugar algum para onde seguir, não tem a quem recorrer. E eu lhe ofereço abrigo, alimento e fortuna... além de liberdade para vingar-se de seus desafetos... desde que me preste seus serviços...
_ Mas, eu... nunca... nem mesmo sei o nome daqueles que me impuseram os infortúnios pelos quais passei... e...
_ E ainda assim, se ressente, carrega dentro de si este ódio que vaza por seus olhos... para alguém que conhece a alma humana, os teus olhos são selvagens e cruéis... lhe ofereço o que deseja em seu íntimo... saciar sua sede... Os seus inimigos os conheço eu... e vos apontarei na hora certa... pois tenha a certeza de que eles cruzarão novamente o seu caminho... por meu intermédio. Preciso lhe lembrar de cada pequena queda que vem seguindo seu grande mergulho no abismo?
Antigos gritos de pavor ecoaram na mente de Catarina. E mais uma vez viu a morte desonrada de seu pai, viu o extinguir-se de sua família... viu novamente suas humilhações, suas privações... seus demônios pintavam com riqueza de detalhes, lembranças doloridas, fazendo-a perguntar como havia sobrevivido a aquilo tudo. Os fantasmas corroíam sua mente, enquanto via sua imagem refletida em milhares de espelhos, onde a imagem não era a dela, mas pequenos vermes que a fazem sangrar, beber de seu próprio sangue. Sufocam-lhe todos eles, quem dera poder se afastar, mas correr não lhe é permitido. As paredes caem e junto com elas esvai-se seu mundo, suas correntes lhe arrastam, lhe estrangulam.

Uma dor aguda a fez curvar-se, começava a perder os sentidos... o cálice que segurava até então caiu no chão... seu líquido vermelho manchava o tapete... aquilo não poderia ser licor... Catarina não suportava dor, isso lhe deixava feroz... a forte dor que começara em seu ventre já se expandia por todo seu corpo, forçando a ajoelha-se.
Demétrius estava agora de pé em sua frente, e não fazia menção de socorrê-la. Num misto de dor e ódio, a moça já então desfigurada pelo o que lhe atormentava, saltou para cima do desconhecido, lhe cravando as grandes garras no pescoço. Mas a dor tornou-se insuportável quando atingiu o alto da cabeça, e já sem forças, tombou desacordada.




Abria os olhos devagar...
Seja lá onde estivesse, estava frio. Seu corpo estava muito dolorido. O que haveria acontecido...? Aos poucos lembrou de um estranho... quanto tempo havia se passado desde que ele a havia tentado envenenar? Onde estava? Com o passar lento dos minutos, sua visão foi se acostumando com a escuridão, e já podia divisar algumas formas...
A porta da alcova foi aberta, por um homem muito alto, que trazia consigo uma lamparina. Na tentativa de defender-se, Catarina encolheu-se como pôde no canto da cama. Pondo a lamparina a um canto, o homem manteve-se de pé.

_ Não se assuste comigo. Já conseguiu lembrar de mim?
_ E como poderia esquecer daquele que tentou me envenenar, Demétrius, seu maldito?!

_Ora, o que vemos aqui? Onde estão as suas maneiras? Não sabe se dirigir a um cavalheiro?
_...
_ Não tentei envenená-la. Do contrário, não estaríamos conversando nesse instante. Naquele cálice, havia um ingrediente... misturado ao meu sangue. Bebendo-o, você se tornou minha. Está sob minhas ordens... e pertencendo a mim, não poderá me atacar como tentou da última vez... ou não recorda?
_ ...
_ Com o tempo você entenderá tudo... não temos pressa alguma. Mas agora quero-a forte. Afinal, não temos muito tempo, e precisaremos domar sua besta, para que nos sirva de modo satisfatório.

_ Me deixe sair daqui.
_ Ainda não. Só sairá daqui quando estiver pronta para me servir. Por enquanto está fraca demais até para levantar-se.
_... Não... me substime...
_ Mas é justamente por não lhe subestimar que por hora a manterei aqui.

Vários dias passaram até que Demétrius veio buscá-la, para em seguida, joga-la numa cela fria e fétida, nos porões de seu castelo. Catarina começava a perder a razão, não sabia a diferença entre os dias e as noites, e por mais que tentasse entender, menos chegava a uma conclusão de tudo aquilo. Na cela haviam seres... que não sabia como chamar... faziam estranhos ruídos... eram magros demais, vestiam farrapos, tinham os braços longos demais em relação ao resto do corpo, as bocas grandes, escancaradas, deixando a mostra os caninos pontiagudos e anormalmente grandes, a pele era ressequida e cinzenta... haviam três desses, e um, encolhido num canto da cela, destroçava uma ratazana que tivera a desventura de passar por ali. Estavam eles a brigar pelo roedor, quando Demétrius chegou acompanhado da jovem, que foi deixada entre eles, e que se agarrava ás barras de ferro, implorando para que ele não a deixasse ali.
Ao perceberem que o homem se afastava, os seres saltaram sobre
Catarina. Ouviam-se seus gritos de pavor por todos os corredores, misturados aos gritos das bestas encerradas com ela no mesmo cárcere. E de repente fez-se o silêncio.
A apenas alguns metros dali, Demétrius assistia à cena bizarra, de uma linda mulher transformar-se em uma fera incontrolável. Impassível, acompanhou cada segundo. Catarina transfigurou-se, e com uma força sobrenatural esquartejou com suas próprias mãos, as três bestas, deixando uma poça de sangue fétido ao seu redor, misturados a pedaços dilacerados dos corpos. De um golpe arrancou as grades da cela, e correu para seu dono, agarrando-o pelo pescoço e prendendo-o contra a parede. Mesmo transformada, Acsínya, possuía aquela beleza sobrenatural, hipnotizante.
Encarando-o nos olhos, aproximou o rosto do homem ao seu de forma ameaçadora, e sussurrrou:
_Nunca mais faça isso...
Em seguida, colocou-o de volta ao chão.
_Claro que não farei, isso não será mais necessário... afinal, acaba de ficar pronta para o que quero de você. Chamar-se-á a partir deste momento, Acsínya.


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