terça-feira, 16 de março de 2010

Ferro e sangue


Olhava para baixo e refazia na mente o caminho que o levara até ali. Estava irremediavelmente só. Um leve enjôo o fez sentir um gosto ruim na boca. Estava faminto, com os pés sangrando. Que morte sem honra o aguardava. Podia senti-la ali, rondando seu corpo como os corvos ao seu redor. Ele não podia vê-los, mas ouviu o canto dos odiáveis pássaros negros lá no alto do céu. Mas sua mente divagava sorrateira, por outros tempos, quando era livre, um homem forte de sua tribo, um guerreiro que foi reconhecido por sua astúcia. A mesma astúcia tola que o deixara naquela posição deplorável. Um nó na garganta. Não, ele não ia chorar. Cumpriria seu destino e morreria ali, pouco a pouco definhando de fome, cansaço e desespero.
Numa emboscada dias antes havia capturado um Guerreiro saqueador que servia a antigo inimigo e torturou-o até que contasse os planos do seu chefe. Lembrou que degolou o pobre homem que já estava praticamente morto. Com as informações recebidas, deixou-se pensar por vários dias no que fazer, até que um plano muito simples se desenhou na frente de seus olhos. Determinado preparou suas armas e numa madrugada silenciosa partiu sozinho em busca da cabeça de Gronkaront, o maldito como era conhecido, por humilhar seus inimigos depois de submetê-los a penosas injúrias, libertando-os em seguida para lembrarem o resto de suas existências as transgressões sofridas. O próprio Shenovak havia sido subjugado quando era apenas um garoto, há muitos anos atrás, em outras terras, muito distantes, de onde fugira, e tentara esquecer suas humilhações enfrentando outros inimigos, oferecendo-lhes a morte com o fio de sua espada.
A cada passo em direção a pequena estrada onde deveria montar sua emboscada, sentia a pele arder com todo o ódio que não adormecera em vinte anos. Poderia perder a vida nisso, mas sentia que sua missão fora cumprida. Seu filho era um bom guerreiro, protegeria seu povo ou morreria tentando.
Dois dias se passaram até chegar a seu destino. Estudou o local. Estava na estrada que o falecido saqueador tinha descrito, escolheu com minúcia o local para montar a armadilha.  Parou diante de uma grande árvore cujos galhos despontavam para o meio da estrada, projetando sua sombra. Retirou a corda de seu saco de viagem, e escalou a árvore. Quase duas horas depois terminara o serviço. Estava exausto. Faltavam ainda dois dias para que Gronkaront chegasse até ali, se seus cálculos estivessem corretos.  Escolheu um lugar calmo mais afastado da estrada, entrando na floresta. Comeu um pedaço de peixe salgado e recostou-se num tronco largo e antigo, caindo num sono pesado e sem sonhos, para acordar horas mais tarde com uivos perigosos. Seus sentidos de guerreiro aguçaram-se, os lobos estavam próximos, podia sentir de onde vinham e sabia que estava chegando cada vez mais perto, atraídos pelo cheiro do humano. Com certeza ele seria o prato principal daquela noite, pois o inverno tinha acabado há alguns dias e os lobos passaram muito tempo sem poder se alimentar como gostariam. Pegou o saco de viagem e tentou andar rápido e sem barulho, mas mal avançou alguns metros, na escuridão entrecortada pelos raios da lua cheia que atravessavam as copas das árvores, avistou um dos grandes na sua frente, com caninos salientes e brilhantes meio cobertos pela pele da boca arqueada formando o rosnado do animal. Com um uivo estridente chamou os outros da matilha, que logo apareceram, ameaçadores, imponentes, famintos. Shenovak não viu outra opção que não fosse fugir. Mas logo um dos lobos pulou sobre ele supreendendo-o. Foi jogado com fúria no chão, e atracado com animal rolaram na terra de folhas secas e lama que se fomara da neve que derretia nos últimos dias. Com uma força que nem mesmo o guerreiro sabia possuir, conseguiu encaixar as mãos no pescoço do bicho, forçando-o contra o chão várias vezes, numa tentativa alucinada de estrangular o animal.  Sentiu uma forte dor na região das costelas e constatou que outro lobo lhe mordia atroz. Com um grito profundo como os gritos de guerra, levantou-se e ainda um pouco encurvado pela dor, procurou o resto da matilha e atirou o lobo que tinha nas mãos sobre eles. O outro lobo assustou-se com o movimento e foi se juntar os outros. O lobo maior havia caído com um som surdo no chão, como um corpo morto.
Aproveitando o pequeno instante de surpresa que causou nos bichos o homem correu, desvairado, lutando para permanecer vivo. E correu com todas as suas forças. Mas logo ouviu uivos e constatou que havia machucado profundamente o velho lobo que o atacara, pois os uivos da matilha eram de lamento. Parou um pouco para respirar, mas seus ouvidos captaram o som de patas correndo novamente, e o Guerreiro tornou a fugir em direção à estrada.
De repente sentiu um galho seco estalar sob seus pés, um lampejo passou por sua mente como um raio, e antes que pudesse completar seu raciocínio, um golpe terrível atingiu sua cabeça enquanto uma espessa corda puxava seus pés para cima. Shenovak caiu em sua própria armadilha. Estava agora de cabeça para baixo, preso pelos pés ao galho de uma grande árvore. As horas seguintes foram de tentativas consecutivas e inúteis de se livrar da corda. Seu saco de viagem fora esquecido no meio da floresta e sua espada deixada ao lado da árvore que lhe dera abrigo durante as horas de sono. Não tinha nada que pudesse ajudá-lo agora. Seu nó era forte e preciso, e por mais que tentasse se livrar, as cordas apertavam ainda mais seus tornozê-los que sangravam e o galho não cederia fácil, escolhera um bem forte para suportar o peso do corpanzil que pretendia apanhar.
O dia havia amanhecido e transcorrido, já entardecia novamente, e Shenovak permitiu-se desistir, deixou a mente divagar livre com pensamentos que beiravam a insanidade e refazia o caminho que o tinha levado até ali. Olhava para o chão acima de sua cabeça. Estava irremediavelmente só. Um leve enjôo o fez sentir um gosto ruim na boca. Estava faminto, com os pés sangrando. Que morte sem honra o aguardava. Podia senti-la ali, rondando seu corpo como os corvos ao seu redor. Ele não podia vê-los, mas ouviu o canto dos odiáveis pássaros negros lá no alto do céu. Mas um outro barulho lhe chamou a atenção: o som de passos, de uma respiração pesada, que pareciam roncos de javali velho. O coração do guerreiro disparou, era a respiração do maldito Gronkaront! Como poderia lutar naquela situação? Fechou os olhos azuis profundos. Deixou os braços caírem. Decidiu fingir-se de morto. Os passos estavam mais próximos e a respiração animalesca também.
Finalmente o maldito o avistara. Sentiu o olhar pesado e devasso do ser maldito sobre seu corpo. E então soou no ar a voz renitente do ogro:
_Ora, não esperava encontrar alguém no caminho até as velhas do mosteiro... aproximou-se verificando se o homem pendurado ainda estava vivo.
_Poderia deixá-lo terminar de morrer aqui, mas seu corpo terá serventia melhor vivo como mais um escravo do meu batalhão! Hahaha! Mas o que é isso?! Você tem a minha marca! Vociferou vendo que o homem tinha nas costas o símbolo marcado, feito com ferro em brasa, num passado distante. Passou a falar bem próximo ao ouvido do homem:
_Hahaha! Então você já passou pelo meu tratamento especial não? Responda moribundo! Quer ser possuído novamente, sua gazelinha?! Sentiu falta? Ninguém es!
De repente os braços de Shenovak enlaçaram o pescoço do Gronkaront, num abraço feroz e mortal, sem deixar que terminasse o discurso de blasfêmias. Aquele abraço era a única coisa que tinha. Não podia vacilar, não podia deixá-lo escapar, aniquilaria ali mesmo a vida daquele miserável. O Maldito era forte e corpulento, mas Shenovak tinha a força do ódio, e absolutamente nada o faria largar o pescoço do seu oponente. Foram minutos lentos e cruéis, Gronkaront sacudia o corpo violentamente, e sentia uma dor terrível, pois o homem que tentava torcer-lhe o pescoço acabara de fincar os dentes em sua orelha separando-a do corpo. Os urros tornaram-se cada vez mais fracos, até que finalmente o monstro caiu por terra, com o pescoço quebrado, a face ensangüentada.  Shenovak olhou para o homem enorme caído no chão, o pescoço rocheado. Não era assim que tinha planejado, ia torturá-lo, matá-lo aos poucos, decepar sua cabeça e pendurar na porta da sua cabana.
Mas estava feliz, vingado. Sentiu que o coração ia parar logo. Estava morrendo, sabia que não iria para o descanso eterno dos verdadeiros Guerreiros, mas levava consigo o maldito de volta para Hel (1), de onde nunca deveria ter saído. Escurecia rápido, e do contrário que havia imaginado, uma orde de Valquírias (2) abriu caminho para as distantes terras de Valhalla (3), respirou fundo fechou mais uma vez os olhos, e dessa vez para sempre. Ele era valoroso e podia morrer em paz. 


Glossário de Mitologia Nórdica

Ψ 1 Hel: mundo dos mortos e lar de gigantes e monstros mantidos aprisionados pelos deuses até o dia do Ragnarök.

Ψ 2 Valquírias: Guerreiras míticas da guerra cuja aparição nos céus era o prenúncio de uma batalha sangrenta. Mas elas também apareciam quando os Guerreiros morriam e eram levados para Valhalla.

Ψ 3 Valhalla: palácio dos heróis dos heróis em Asgard, para onde Guerreiros Valorosos iam ao morrer em batalha e sem medo.

segunda-feira, 15 de março de 2010

A Dama-Morcega de Giulia Moon


Uma porta obscura para um mundo completamente fantástico, onde o horror e o prazer andam irresistivelmente juntos. Foi essa a sensação que tive quando li o Dama-Morcega a primeira vez! E a mesma sensação quando li a segunda a terceira...
As narrativas nos envolvem e antes mesmo que percebamos, estamos viajando por todos os lugares impossíveis de se chegar sem imaginação e uma pitada de horror! Cada palavra faz parte de uma teia hipnótica que nos conduz até a última página sem um segundo para respirar, o que é um pouco decepcionante, pois quando terminamos o livro ficamos com aquela sensação de quero mais! Os trabalhos de Giulia Moon têm esse dom, de tecer sonhos que se projetam de nossos olhos para dentro de nossas almas, e brinca com aquilo que no fundo sempre desejamos que nos tocassem: nossas fantasias.
O livro tem 158 páginas divididas em deliciosos 11 contos! Com personagens intrigantes e mágicos que nos convidam a conhecer seus mundos!