quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Leitura de Kaori


Cumplicidade. E uma deliciosa sensação de sonhar de olhos abertos.
Poderia atribuir essas sensações ao  meu espírito pisciano e altamente impressionável. Mas não é isso.  As personagens são cativantes, e cada novo evento não apenas nos tira o fôlego, mas nos torna cumplices. Cumplices de aventuras, de sonhos e de um universo que não pertence mais a quem o criou, mas que agora já faz parte de nós, leitores apaixonados e ávidos por mais adrenalina, mais detalhes e por mergulhos cada vez mais profundos nas almas de nossos personagens favoritos. Espelhos fiéis e extraordinários que permanecem ocultos de nós mesmos, esperando uma fagulha de paixão para finalmente libertarem-se.
 Kaori evoluiu para o mundo etéreo dos arquétipos, um novo palco onde se desenharam heróis, ou melhor, anti-heróis (adoráveis, diga-se de passagem) que agem conforme seus corações, conforme suas essências, fraquezas, características e qualidades e que por mais fantásticos que sejam trazem dentro de si sentimentos e atitudes extremamente humanos. E  talvez seja essa a mágica tão sublime que nos marca profundamente nessas duas obras: Seres fantásticos incrivelmente humanos, habitantes de uma realidade fantástica e tão verdadeira que povoa  suave e inexoravelmente nosso imaginário.
A leitura de Kaori, ambos os livros, me proporcionaram uma viagem delirante e de uma excitação sem precedentes. Me vi presa em cenários reais e palpáveis, de convívio comum e que descortinaram aquela sensação maravilhosa de que sim, é fantástico pelo simples fato de realmente poder ter acontecido. De estar ali, bem pertinho da gente ao alcance das mãos. Um outro ponto que  me chamou muito a atenção, principalmente no Kaori 2 -Coração de Vampira- foi o entrelaçamento de seres fantásticos do nosso folclore brasileiro com seres do folclore oriental, que por si só tornam Kaori uma obra única e digna de respeito e admiração.
 Indico essa leitura para todos aqueles que se permitem perder, mesmo que por alguns instantes, o controle sobre sua própria imaginação e entrar sem medo num mundo em que tudo, absolutamente tudo é absurdamente possível.
Claro que eu não poderia de forma alguma deixar de agradecer a Giulia Moon, a criadora do Universo Kaori, que se mostrou profundamente conhecedora da natureza humana, e uma pesquisadora incansável, por nos ter presenteado com esses dois belos “portais de sonhos”.  Então, muito obrigada Giu!

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Gregória


Aconteceu. Simples, intenso e inexplicavelmente irremediável. A única mulher presente naquele cortejo funeral estava morta. Uma legião de dois mil homens vindos de todas as partes do mundo seguiam tristes para o destino final da única mulher que foram capazes de amar descontroladamente. A manhã estava radiante, como se o universo saudasse a nova alma que agora se abrigaria entre as estrelas. No entanto, uma brisa fria insistia em permanecer indo e vindo, obrigando todos a sentirem um frio desconfortável e inquietante. Todos queriam dizer adeus à Gregória.
O mundo real sempre escreveria sua própria versão do inexplicável.
Cada pedaço de pele latejava, a febre fervilhava em cada nervo. Um terrível sentimento de perda de si mesma em seu próprio domínio. Era fato. Era real e palpável. Como não se perder nas perfeições das curvas? Na pele alva e profana?  “ E se eu te dissesse que nada disso é real?” a voz cálida e sussurrada que incitava desejo e luxúria dizia o contrário. O arrepio espicaçante e gélido. “você é tão linda” eles diziam. Mas nenhum fora capaz de lhe saciar a fome.  Nenhum dos mais apaixonados amantes foi capaz de satisfazer-lhe a ponto de desfalecer. Mas ali, deitada e deliciada em seus próprios braços, Gregória respirava e inspirava todo o prazer de si mesma."Você é tão maravilhosa" eles gemiam. Nem mesmo nas noites mais terríveis onde pensava perder a sanidade e se entregava a vários deles, nunca sentiu prazer  tão intenso. Jamais. A saliva morna transpassava entre suas línguas e lábios. A perfeita dança de iguais. O mergulho em águas profundas. E que nunca mais retornasse à  superfície. Que nunca mais a solidão a atravessasse novamente. Agora era inteiramente de si mesma. Cativa. E qual não foi o frenesi despertado pelo roçar quase animal dos corpos idênticos? Não havia mais tempo para se perder em indagações racionais. Gregória jamais deixaria de pertencer a si mesma novamente.  "Você é tão quente” eles sussurravam.
Lembranças explodiam cada vez mais rápido, e cada vez mais forte. Queria guardar aquele momento para sempre na memória, mas ela lhe traía e seus olhos lhe pregavam uma peça.
Procurava se lembrar de como tudo aconteceu. “ E se eu te dissesse que nada disso é real?” Um novo suspiro e uma nova onda de prazer. Uma nova e deliciosa convulsão a fazia sacudir todo o corpo. Quando foi que ela apareceu? Há um ou dois dias talvez. Mas a sensação era de ter estado ali a vida inteira.
Num último crepúsculo de lucidez, Gregória levantou da banheira onde se banhava com óleos e sais. E vestida com o roupão de tecido esvoaçante e transparente atravessou o quarto em busca do adorado espelho de moldura escarlate. E lá permaneceu horas a se admirar. Olhava para seu reflexo e imaginava extasiada quantas vezes seu corpo havia proporcionado prazeres inenarráveis  ao submeter-se aos caprichos luxuriosos de seus amantes. Que feitiço tinha ela para aumentar todos os dias as hordas de machos sedentos de amor que amontoavam-se nos portões de sua elegante e desolada casa? Que necessidade voraz era aquela que a obrigava a se entregar a tantos homens? Homens que ela sabia que jamais lhe dariam o que ela desejava.  Gregória desejava ardente por si mesma.
E foi num desses fins de tarde, onde devaneios tomam conta da alma e delírios deixam marcas de fogo na mente, que um calafrio de espanto percorreu o corpo de Gregória.  Olhava estupefata seu reflexo que começava a sair do espelho e tomar lugar no quarto tanto quanto ela própria. Como numa ordem demoníaca, uma piada de mau gosto, lá estava o reflexo tão nu e tão perfeito quanto a própria dona. Ambas trocaram olhares atônitos. Num primeiro momento de curiosidade aproximaram-se cautelosamente e devagar. O espanto cedeu lugar ao desejo. A respiração forte e entrecortada prenunciou  um longo ósculo. Não havia pontos a descobrir uma na outra. Ambas sabiam exatamente o que desejavam. Modelo e pintura, criador e criatura. Amaram-se sem reservas, sem pudores e sem limites. Consumiram-se dias a fio. Não havia mais o resto do mundo. O universo se resumia a latência desenfreada de um par de Gregórias sedentas e letais.
E quando muitos dias se passaram e muitas noites se desvaneceram no romper da aurora, o reflexo, exaurido de suas forças,  rastejou de volta para o espelho. Gregória, ao perceber o intento de sua cópia apressou-se em destruir o caminho de volta. No auge de sua insanidade ela jamais permitiria que seu reflexo voltasse para o espelho. Aquela superfície frágil e gélida, não mais a separaria dela mesma. Sua cópia permaneceu caída no chão. O corpo nu entre pedaços do que outrora fora um espelho. Gregória aconchegou a cabeça do reflexo entre os seios e chorou ao perceber o último suspiro. Chorou como nunca havia chorado. Chorou até entender que sua dor jamais seria suplantada.
Uma idéia visceral tomou conta da mente já tão perturbada. Não se sabe quanto tempo  levou para ser realizada. Mas foi. Apanhando um caco de vidro, cortou suavemente a pele do cadáver e se alimentou dele por dias seguidos. Cada pequeno pedaço de víscera que escorregava por sua garganta trazia de volta doces e dementes lembranças de dias em que conheceu o prazer de si mesma. Quando finalmente nada mais restou de si mesma, uma torpe saudade a enfraqueceu e levou embora a última chama de vida que havia na ruiva mulher.
Na noite em que foi encontrada morta pelos empregados, uma tristeza sem surpresas acalentou seus  corações.  Todos sabiam que os hábitos da patroa ainda a levariam embora do mundo dos vivos. Gregória jazia nua, entre cacos de vidro e pequenos pedaços de papel picado usados com ópio e espalhados pelo quarto.  O mundo real sempre escreveria sua própria versão do inexplicável.