terça-feira, 3 de novembro de 2009

O substituto


Sentado em meio ao silêncio, Lourenço escrevia e mal podia enxergar as mal traçadas linhas que se delineavam na penumbra... redigia demoradamente e em detalhes, sua carta de despedida. Seus pulmões não mais funcionariam em breve... muito breve.

Lourenço não tinha mais nada que o prendesse aqui. E olhando melhor para sua própria história, logo percebeu que nunca teve nada que o torna-se um fiel amante da vida.

Seu olhar perdido parecia nem mesmo notar o deslizar da pena sobre a folha delicada, muito embora atento estivesse ao exercício de escrever. Seu cabelo, desgrenhado, sua barba rala em alguns pontos do rosto e abundante em outros, formavam-lhe um mau aspecto. Como se ainda em pleno gozo de sua energia vital, deixasse-se morrer, apodrecendo então ao se refere à aparência: exalava um mau cheiro asfixiante, desses que se tornam naturais àqueles que abusam frenquentemente do álcool e fazem dele seu vício. Mas Lourenço há muito não tinha esse direito, e o mau cheiro era apenas mais um indício de sua putrefação, sua invalidez para qualquer atividade de qualquer natureza.

Levantou-se da cadeira e em dois passos alcançou a janela de seu cubículo. Olhava para o céu negro, sem estrelas ou lua, e sentiu uma lufada de vento perpassar-lhe o corpo franzino. Sabia o quanto este pequeno gesto lhe debilitaria ainda mais o organismo. Mas agora isso já não importava. Mas agora isso já não fazia diferença. Havia chegado ao ponto de acreditar que todos os seus malefícios provinham de uma única doença: a de estar vivo. Dentro das limitações de seu cérebro subdesenvolvido, chegara à conclusão de que a vida carnal era uma doença. Nascer era em si, o ato de adoecer a alma. E, que a única solução para todas as doenças era a morte. Por acaso, alguém já ouviu falar de morto doente? Logo estar morto é estar sadio. “mens sana in corpore mortua”.

Voltou à escrivaninha, e continuou sua carta, que já se tornava longa demais. A insônia não lhe permitiu descanso e no romper da aurora tinha suas raras forças exauridas de seu ser. Com tremendo esforço arrastou-se ao monte de feno que lhe servia de cama e deixou-se cair pesadamente, e, ao som do cantar dos pássaros, recebeu a escuridão eterna a qual pertencia seu lúgubre ser.


No entanto meu caro leitor, não lhe permitirei que definhe, perturbado pela curiosidade, e generosamente lhe mostro o que Lourenço nos deixou.

Não datarei esta carta por não ser necessário. Tão pouco contarei pormenores de minha vida.

De minha história não há o que contar, uma vez que sou aquilo que não sonha e que fui mais um neste vasto mundo. Escrevo apenas para não levar comigo essa loucura, que me marcou todo o tempo que estive em sociedade, e que me fez afastar-me das pessoas as quais nutria algum sentimento. Agora recordo: nunca tive a oportunidade de gostar de alguém. Eu tinha medo, e, sobretudo tinha nojo. Nojo de tudo. Nojo de todos. Tantas vezes vi pessoas e animais morrendo, que tinha um nojo inexplicável de tudo o que era vivo. Tinha, devo admitir nojo de mim mesmo. A vida era a grande desgraça que assolava a todos. E é por causa dela que estou aqui, ressequido de minhas forças, despojado de meus sonhos, amargurado em minha loucura.

Um costume que me levava tranquilidade ao espírito era acompanhar a morte de pessoas e animais. Mas principalmente de pessoas. Sentia um prazer quase sensual em acompanhar o último suspiro de um ser que desistia da vida ou não tinha mais forças para encará-la. Gostava de ver o semblante de alívio nas faces sulcadas. E de repente lá vinha ela: a grande sombra, que surgia por encanto na cabeceira da cama, enfiando os dedos nos olhos do defunto e puxando sua alma de lá. As vezes saía um líquido verdolengo que ela colocava numa grande bolsa negra, outras vezes saía uma fumaça que ela prendia num pote. E muito, mas muito raramente das narinas do defunto saía sua alma idêntica ao corpo que jazia inerte no leito. E sempre antes de ir embora com seu novo pupilo a sombra negra olhava para mim e apontava sua mão ressequida para meu rosto, como quem diz: “ seu momento chegará”.

Quando adulto, tentei insistentemente conversar com a sombra colecionadora de almas. Queria saber onde ela morava, para onde ia e por que tinha esse trabalho tão ingrato. E ela nunca me respondeu. Quem sabe agora ela não me permitirá uma breve conversa, ou, as repostas para algumas perguntas? Apenas algumas? Ela tem me visitado nos últimos dias, e isso me tem lembrado que minha hora está chegando. Não tenho medo, não tenho motivos para sentir que não deveria ir embora. A vida toda tive um objetivo: ser sadio. A saúde me invadirá no momento em que minhas entranhas não mais funcionarem, quando meus pulmões se negarem a produzir essa secreção imunda que vez ou outra me interrompe a respiração.

Mas a sombra higienizadora do mundo não me permite uma conversa..

Ho. Ela está ao meu lado agora, o capuz esconde seu rosto, mas posso divisar duas minúsculas luzes vermelhas onde, presumo devam estar seus olhos. Esta madrugada está muito mais fria que as passadas, e não recordo de ter sentido tanto frio em todos esses anos.

Não preciso falar. Ela sabe o que quero, e por capricho não me dará o presente que espero há décadas.

“olhe para o céu Lourenço, para onde te levarei não haverá um céu para ser visto.”

“É uma conversa o que desejas? Teremos muito tempo para conversar.”

Ela pode conversar comigo, sussurra em minha mente, com sua voz rastejante, mas não responde as perguntas.

“Não há mais ninguém no mundo que me possa ver antes de eu lhe venha buscar. Mas você Lourenço, escolhi ainda dentro do ventre de sua mãe, que morreu com o esforço de lhe por para fora das entranhas. Agora que está tão perto, preciso lhe dizer, você é a porta para o meu descanso. Também vivi entre os humanos, e um dia, como essa madrugada que finda, fui levado da vida e transformado no atravessador. Depois de séculos, esqueci meu sexo, minha história. Apenas sei que eu também tenho meu fim, e que vim te buscar para me substituir em meu ofício.”

A voz rastejante me surpreendeu. Agora serei eu o atravessador de almas. E o que encontrarei em minha nova jornada?

Para quem encontrar estas linhas deixo uma certeza: um dia virei buscar-lhe.

A madrugada começa a perder sua escuridão. Agora apenas uma necessidade me consome: preciso fechar os olhos e dormir. Ela está na cabeceira, esperando que eu descanse a retina. Sei, que, quando abrir os olhos novamente, já não estarei nesse celeiro. Quem sabe estarei vestido de negro, puxando a tua alma pelos olhos?