terça-feira, 3 de novembro de 2009

O substituto


Sentado em meio ao silêncio, Lourenço escrevia e mal podia enxergar as mal traçadas linhas que se delineavam na penumbra... redigia demoradamente e em detalhes, sua carta de despedida. Seus pulmões não mais funcionariam em breve... muito breve.

Lourenço não tinha mais nada que o prendesse aqui. E olhando melhor para sua própria história, logo percebeu que nunca teve nada que o torna-se um fiel amante da vida.

Seu olhar perdido parecia nem mesmo notar o deslizar da pena sobre a folha delicada, muito embora atento estivesse ao exercício de escrever. Seu cabelo, desgrenhado, sua barba rala em alguns pontos do rosto e abundante em outros, formavam-lhe um mau aspecto. Como se ainda em pleno gozo de sua energia vital, deixasse-se morrer, apodrecendo então ao se refere à aparência: exalava um mau cheiro asfixiante, desses que se tornam naturais àqueles que abusam frenquentemente do álcool e fazem dele seu vício. Mas Lourenço há muito não tinha esse direito, e o mau cheiro era apenas mais um indício de sua putrefação, sua invalidez para qualquer atividade de qualquer natureza.

Levantou-se da cadeira e em dois passos alcançou a janela de seu cubículo. Olhava para o céu negro, sem estrelas ou lua, e sentiu uma lufada de vento perpassar-lhe o corpo franzino. Sabia o quanto este pequeno gesto lhe debilitaria ainda mais o organismo. Mas agora isso já não importava. Mas agora isso já não fazia diferença. Havia chegado ao ponto de acreditar que todos os seus malefícios provinham de uma única doença: a de estar vivo. Dentro das limitações de seu cérebro subdesenvolvido, chegara à conclusão de que a vida carnal era uma doença. Nascer era em si, o ato de adoecer a alma. E, que a única solução para todas as doenças era a morte. Por acaso, alguém já ouviu falar de morto doente? Logo estar morto é estar sadio. “mens sana in corpore mortua”.

Voltou à escrivaninha, e continuou sua carta, que já se tornava longa demais. A insônia não lhe permitiu descanso e no romper da aurora tinha suas raras forças exauridas de seu ser. Com tremendo esforço arrastou-se ao monte de feno que lhe servia de cama e deixou-se cair pesadamente, e, ao som do cantar dos pássaros, recebeu a escuridão eterna a qual pertencia seu lúgubre ser.


No entanto meu caro leitor, não lhe permitirei que definhe, perturbado pela curiosidade, e generosamente lhe mostro o que Lourenço nos deixou.

Não datarei esta carta por não ser necessário. Tão pouco contarei pormenores de minha vida.

De minha história não há o que contar, uma vez que sou aquilo que não sonha e que fui mais um neste vasto mundo. Escrevo apenas para não levar comigo essa loucura, que me marcou todo o tempo que estive em sociedade, e que me fez afastar-me das pessoas as quais nutria algum sentimento. Agora recordo: nunca tive a oportunidade de gostar de alguém. Eu tinha medo, e, sobretudo tinha nojo. Nojo de tudo. Nojo de todos. Tantas vezes vi pessoas e animais morrendo, que tinha um nojo inexplicável de tudo o que era vivo. Tinha, devo admitir nojo de mim mesmo. A vida era a grande desgraça que assolava a todos. E é por causa dela que estou aqui, ressequido de minhas forças, despojado de meus sonhos, amargurado em minha loucura.

Um costume que me levava tranquilidade ao espírito era acompanhar a morte de pessoas e animais. Mas principalmente de pessoas. Sentia um prazer quase sensual em acompanhar o último suspiro de um ser que desistia da vida ou não tinha mais forças para encará-la. Gostava de ver o semblante de alívio nas faces sulcadas. E de repente lá vinha ela: a grande sombra, que surgia por encanto na cabeceira da cama, enfiando os dedos nos olhos do defunto e puxando sua alma de lá. As vezes saía um líquido verdolengo que ela colocava numa grande bolsa negra, outras vezes saía uma fumaça que ela prendia num pote. E muito, mas muito raramente das narinas do defunto saía sua alma idêntica ao corpo que jazia inerte no leito. E sempre antes de ir embora com seu novo pupilo a sombra negra olhava para mim e apontava sua mão ressequida para meu rosto, como quem diz: “ seu momento chegará”.

Quando adulto, tentei insistentemente conversar com a sombra colecionadora de almas. Queria saber onde ela morava, para onde ia e por que tinha esse trabalho tão ingrato. E ela nunca me respondeu. Quem sabe agora ela não me permitirá uma breve conversa, ou, as repostas para algumas perguntas? Apenas algumas? Ela tem me visitado nos últimos dias, e isso me tem lembrado que minha hora está chegando. Não tenho medo, não tenho motivos para sentir que não deveria ir embora. A vida toda tive um objetivo: ser sadio. A saúde me invadirá no momento em que minhas entranhas não mais funcionarem, quando meus pulmões se negarem a produzir essa secreção imunda que vez ou outra me interrompe a respiração.

Mas a sombra higienizadora do mundo não me permite uma conversa..

Ho. Ela está ao meu lado agora, o capuz esconde seu rosto, mas posso divisar duas minúsculas luzes vermelhas onde, presumo devam estar seus olhos. Esta madrugada está muito mais fria que as passadas, e não recordo de ter sentido tanto frio em todos esses anos.

Não preciso falar. Ela sabe o que quero, e por capricho não me dará o presente que espero há décadas.

“olhe para o céu Lourenço, para onde te levarei não haverá um céu para ser visto.”

“É uma conversa o que desejas? Teremos muito tempo para conversar.”

Ela pode conversar comigo, sussurra em minha mente, com sua voz rastejante, mas não responde as perguntas.

“Não há mais ninguém no mundo que me possa ver antes de eu lhe venha buscar. Mas você Lourenço, escolhi ainda dentro do ventre de sua mãe, que morreu com o esforço de lhe por para fora das entranhas. Agora que está tão perto, preciso lhe dizer, você é a porta para o meu descanso. Também vivi entre os humanos, e um dia, como essa madrugada que finda, fui levado da vida e transformado no atravessador. Depois de séculos, esqueci meu sexo, minha história. Apenas sei que eu também tenho meu fim, e que vim te buscar para me substituir em meu ofício.”

A voz rastejante me surpreendeu. Agora serei eu o atravessador de almas. E o que encontrarei em minha nova jornada?

Para quem encontrar estas linhas deixo uma certeza: um dia virei buscar-lhe.

A madrugada começa a perder sua escuridão. Agora apenas uma necessidade me consome: preciso fechar os olhos e dormir. Ela está na cabeceira, esperando que eu descanse a retina. Sei, que, quando abrir os olhos novamente, já não estarei nesse celeiro. Quem sabe estarei vestido de negro, puxando a tua alma pelos olhos?

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Uma dica de leitura!


Nem sei porque ainda não mencionei o livro no qual participo com um conto, o Vampirus Brasil, organizado pela Denise MG, que foi lançado em abril de 2008 na Casa Das Rosas, ^^ No total, somos 15 escritores com contos ilustrados por 14 desenhistas!
E essa é a dica pra quem quer mais uma leitura vampírica deliciosamente interessante!

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Oslav Orsov

"Pode cair fora bêbado". Projetado para fora de um bordéu, nos arredores de Moscou, foi uma vez avistado o Sr. Orsov, em uma cena incomum. Incomum sim, pois um jovem da mais alta linhagem da sociedade russa da época, estava a ser escorraçado de um lugar, onde, a hipocrisia e a lascívia reinavam, e onde com certeza, um "bem-nascido" jamais seria enxotado á rua como um cão, a quem ninguém deseja. Mas, Oslav Orsov, parecia amaldiçoado e esquecido, desde a noite do grande incêndio, inesquecível ao país, todos sentiram-se abalados com a notícia de que um bairro nobre e grande parte da periferia foram incinerados em apenas algumas horas. Casualidade ou simples infortúniodo destino? Familia, casa, (entre outros bens materiais) e mais importante para si, sua vida, findaram-se entre chamas inexplicáveis. Desta noite, carregava apenas uma breve e angustiante lembrança, que nunca lhe fora revelada com nitidez. E o mistério de como se salvara continuava intocado.
Levantando-se e limpando a neve do único sobretudo que lhe restara, saiu cambaleante pelo caminho nevado, perdendo-se no labirinto das ruas, que se costuravam em serpentes. Mesmo fraco, sua mente mantinha-se fértil, entregue a delírios, e á toda sorte de confusos sentimentos, ouvia a sinfonia macabra de seus demônios pessoais que uivavam e riam! Riam de sua miséria, de sua fome... fome esta que se tornara bestial desde a noite do incêndio. Suas alucinações, pintavam-lhe um quadro de horrores, vindo em sua direção. E neste interim, avistou uma figura sombria, recostada numa árvore, iluminada pelos raios do luar, ainda tímido pela presença das nuvens, que circunvagavam pesadamente pelo céu.
Procurando ter certeza de sua visão, limpou os olhos, e fora atingido por uma rajada de ar frio do inverno. E, para sua surpresa, estava frente a frente com sua sombria Afrodite, semi-nua, com longos cabelos negros a escorregar-lhe até a cintura, cobrindo-lhe a silhueta. Podia sentir o cheiro do horror e da morte, vindo em sua direção. Suas pernas vacilaram, e já não tinha, forças para manter-se sobre elas, quando sentiu-se amparado por braços fortes e frios que o embalaram em seus pesadelos, com canções tristes e melancólicas,criadas centenas de anos antes. Antes mesmo de seu surgimento neste mundo. Com letras ininteligíveis a princípio, mas, compreensíveis com o passar lento dos segundos. Um negro caminho abriu-se diante dos seus olhos ébrios, com curvas mortais e degraus intransponíveis por corpos humanos, de tão altos... desafios amargos a serem enfrentados...
Ao seu lado a figura de uma deusa, cujo o olhar lhe inspirava bens inesgotáveis e vida eterna, estendeu-lhe a mão frágil, de delicados dedos, e ao tocar a mão que lhe fora oferecida, percebeu-se tragado pela escuridão. Quando reabriu os olhos, encontrou-se numa sala, com janelas enormes de vitrais empoeirados e ar cáustico. Diante de si, postavam-se duas figuras: uma, vestida de negro, com um brilho vermelho nos olhos, sua alva pele e corpo franzino, eram visíveis através do delicado tecido... A outra, envolvida por vestes simples que denunciavam sua posição serviçal, possuía uma aparência frágil, que remetia á sua inocência juvenil. Seus olhos pareciam perdidos no espaço, e aparentemente, não importava-se de estar atada a uma cadeira. Parecia nem mesmo dar contade sua própria existência.Uma voz doce o induziu a abraçar a jovem hipnotizada. Seu lado humano repudiava a ação, mas o som do coração acelerado de sua vítima, o conduzia a sugar-lhe toda a vida, enquanto sua presa deliciava-se no prazer funesto de sua morte. Seu avental, antes branco, tingiu-se lentamente de rubro líquido...
Oslav sentiu-se saciado. Seu coração acalmou-se, e já não ouvia a doce voz, que calou-se ao alimentar seu lado negro e voluptuoso com a vida de mais um ser...




Este conto está disponível no fanzine Adorável Noite n° # 029# de meu amigo escritor Adriano Siqueira!

sábado, 12 de setembro de 2009

Carmen

"Olhos tristes são o que vejo em você." Disse Cássio. ' Seus olhos são enormes, me assustam, quando as vezes e muito por acaso os encontro.Você não poderia ser menos feia e desarrumada, Carmen? Anda sempremuda se esgueirando pelos cantos das paredes, se escondendo nassombras por detrás das portas desta casa imensa. Sua presença me enoja, parece um bicho, não fala. Come sem maneiras. Mas, os seus olhos tristes e enormes, que parecem estar cada vez maiores, toda vez que em que me vejo obrigado a suportar sua imagem, são o que mais chamam atenção. Eles me fazem perdoar toda essa imundície que suapresença exala. Quero ver o quanto mais de seu rosto estes teus olhos devorarão. Uma noite, sonhei que tu eras toda olhos, um grande par de olhos a vagar nesta casa, se arrastando, como é de seu costume fazer.Foi uma visão medonha, tenho que admitir, mas... muito intrigante. E penso se não é possível que te tornes realmente aqueles olhos. Como sempre não falas nada. És muda mesmo, ou não sabes falar criatura asquerosa? Responde, responde, ou arrancar-te-ei a língua, pois é desnecessário mantê-la, sendo que não a usa para nada! "Cássio correu em direção á moça e esbofeteou-lhe. E quando viu o lábio inferior de Carmen sangrar, ordenou que o deixasse em paz. Ela, porsua vez, arrastou-se para fora da sala, e trancou-se no porão, que era o que tinha por quarto. Em seguida ele me recebeu, pois era meu primeiro dia na Residência Stern. E não se incomodou de ter feito tal cena em minha frente. Não parecia consternado ou envergonhado. Passou-me a lista de obrigações, mostrou meus aposentos e foi-se. Carmen era uma moça, cuja aparência me abstenho de descrever, por não encontrar palavras que as valham. Tinha dezesseis anos, acho. Eram irmãos por parte de pai, o que vim a descobrir bem depois. Demorei a me habituar com os modos que Cássio tratava a própria irmã. Conforme os anos foram passando, descobri o motivo real de todo aquele ódio aparente, e, não sei como hoje ainda tenho coragem de relembrar estes fatos intrigantes e tristes. Quem sabe eu venha a ter culpa, mas averdade, é que agi pensando que estava a fazer o certo. Talvez o demônio tenha me enfeitiçado. Mas agora que a vida já se finda e não tenho muito o que fazer, quero deixar como herança minhas lembranças,malditas talvez, mas sempre lembranças.

Acsínya

"Venha comigo. Ambos sabemos que você não tem para onde ir. Aqui fora está frio e em meu castelo há com certeza aposentos que lhe agradarão. Não tenha medo. De tudo o que já lhe aconteceu, seguir para meu castelo agora seria o menor de seus males, suba em meu carro."
Vencida pelos argumentos de um Homem que jamais vira na vida, Catarina subiu no carro, e em seguida o cocheiro disparou com seus cavalos velozes rumo às montanhas. Ali dentro era confortável, e no silêncio ela se fazia muitas perguntas... a noite continuava, com a grande lua reinante no céu com seu séqüito de súditas estrelas. Parecia já que estavam lá dentro há horas, apenas o barulho do correr dos cavalos e das rodas. "De onde aquele homem a conhecia? E por que quisera acolhê-la? Quereria ele realmente acolhe-la, ou se aproveitaria dela como tantos mais já o fizeram?" Não podia ver os olhos dele para saber o que se passava em si... dentro do carro apesar da luz da lua, não se podia divisar esses pequenos detalhes.
Faltava pouco para o amanhecer quando pararam diante de um grande castelo. O misterioso cavalheiro desceu e ajudou Acsínya a descer também. Levou-a , guiando-a castelo a dentro.

No quarto que lhe fora reservado, uma criada lhe aguardava, e numa banheira de porcelana, havia água quente e perfumada para banhar-se. Depois de livrar-se dos farrapos que trajava, tomou demorado banho, e com ajuda da criada, lavou os bastos cabelos encaracolados. Uma lareira acesa garantia que o quarto se mantivesse aquecido. Seguido ao banho, tomou uma espécie de sopa e vestindo uma elegante camisola, entregou-se a um sono pesado e sem sonhos, mesmo com o sol já a vista lá fora.
Ao despertar, percebera que dormira por todo o dia, pois a noite já caía. E antes mesmo que pudesse pensar surgiu novamente a criada, trazendo nos braços um luxuoso vestido. E desempenhando mais uma vez o seu papel, ajudou sua ama a vestir-se e pentear-se, ficando pronta para o jantar.
"O Senhor a aguarda para o jantar". Essa fora a primeira vez que ouviu a voz da criada, que desde o primeiro momento não falara coisa alguma. E seguindo a criada por um labirinto de corredores e escadas, chegou à uma imensa sala de jantar.
Nas paredes haviam grandes espelhos suspendidos, onde Catarina viu sua própria imagem, como há muito não via... parecia a mesma jovem de tantos anos atrás, mas seu olhar agora carregava grandes mágoas, e seus lábios estavam crispados pelas desventuras que lhe haviam podado as alegrias da vida...num leve sacudir de cabeça espantou as lembranças, e sentou-se no lugar que lhe fora indicado.




O jantar seguiu-se silencioso. Catarina comportava-se de maneira impecável, apesar dos anos longe das normas de educação em que fora criada. Em sua cabeça raios de pensamento a deixavam inquieta, porém, aprendeu a não deixar-se traduzir por seu rosto. Manteve-se impassível, até que, deixada a sala de jantar, seguiram para um confortável cômodo, sentando-se numa poltrona perto da lareira, aceitou um cálice de licor servido por seu misterioso anfitrião, e esperou que ele então se acomoda-se na poltrona logo a sua frente.
_O que deseja de mim senhor...?
_Perdão, não apresentei-me ainda, sou Demétrius Corzzine.
_ Então Senhor Corzzine, o que deseja de mim?
_ Para uma pergunta simples, uma resposta simples: Desejo que trabalhe para mim.
_ O que? No que me deseja empregar? Mas antes, responda-me, Senhor Corzzini, De onde me conhece? Qual sua intenção ao tirar-me da miséria em que me encontrava?
_ Perguntas pertinentes... Catarina Damachio, Conheço você e sua história há algum tempo, e lhe venho estudando os passos... como sei também que estamos muito longe de sua terra natal, conheço sua história de perseguições... seu destino não lhe tem sido muito generoso, não é mesmo? Digamos que... estou disposto a dar-lhe a oportunidade de vingar-se de todos os que contribuíram para sua derrocada... mas, como já deve sabê-lo, há um preço a pagar por minha ajuda.
_...
_ Ora, não me olhe desta maneira. Sou o primeiro em anos a lhe oferecer algo aceitável.
_ Ainda não sei se sua proposta me parecerá aceitável.
_ Garanto que não é nada que você tenha visto... Mas para que me compreenda terei de lhe contar algumas coisas. Senhorita Damachio, sou um homem de muitas posses... de muitas conquistas... e tenho a visão de aumentar meu poder... porém, tenho muitos inimigos à minha espreita, a me preparar armadilhas, a esperar qualquer deslize meu. E ainda existem aqueles que tramam minha destruição definitiva... Não posso simplesmente dar cabo deles, como deve estar pensando agora, que me seria fácil faze-lo. No mundo em que existo, assim como você o sabe pois já o freqüentou por muito tempo, as aparências e a falsidade são o que nos sustenta. Meus inimigos me sorriem e me cumprimentam com um "vida longa", quando em seu íntimo estão a desejar meu sangue em cálices de ouro...

_ E que tenho haver com isso?
_ Você liquidará com meus inimigos. Não se espante. Ambos sabemos do que é capaz. Quem desconfiaria de tão bela figura?
_ Mas eu... eu...
_ Até agora sempre agiu para defender-se... e creio que nem você mesma saiba do monstro perspicaz e sanguinolento que divide seu corpo com sua alma... racional e friamente assassino... nunca se perguntou o que acontecia com você nos seus lapsos de memória? Numa manhã qualquer acordar suja e quase sem roupa, com as unhas em sangue, e em outra acordar sob os cuidados de um grande senhor para com a sua mais perfeita e favorita concubina? A morte parece se arrastar ao seu lado... parece lhe perseguir o encalço, de modo exato, preciso.
_...
_ Pois lhe digo, que a morte, nada mais é além de você mesma.
_ Infelizmente não sei como ajudá-lo. E o que ouvi até agora, Senhor Corzzini, não me parece ser mais que ficção. Suas intenções não se fizeram claras até agora.
Catarina sentia seu corpo enregelar, e enfiava as unhas com força no braço da poltrona. Imagens estranhamente familiares bailavam diante de seus olhos... Com grande esforço, levantou-se.

_ E para onde pensa em ir agora? Não tem lugar algum para onde seguir, não tem a quem recorrer. E eu lhe ofereço abrigo, alimento e fortuna... além de liberdade para vingar-se de seus desafetos... desde que me preste seus serviços...
_ Mas, eu... nunca... nem mesmo sei o nome daqueles que me impuseram os infortúnios pelos quais passei... e...
_ E ainda assim, se ressente, carrega dentro de si este ódio que vaza por seus olhos... para alguém que conhece a alma humana, os teus olhos são selvagens e cruéis... lhe ofereço o que deseja em seu íntimo... saciar sua sede... Os seus inimigos os conheço eu... e vos apontarei na hora certa... pois tenha a certeza de que eles cruzarão novamente o seu caminho... por meu intermédio. Preciso lhe lembrar de cada pequena queda que vem seguindo seu grande mergulho no abismo?
Antigos gritos de pavor ecoaram na mente de Catarina. E mais uma vez viu a morte desonrada de seu pai, viu o extinguir-se de sua família... viu novamente suas humilhações, suas privações... seus demônios pintavam com riqueza de detalhes, lembranças doloridas, fazendo-a perguntar como havia sobrevivido a aquilo tudo. Os fantasmas corroíam sua mente, enquanto via sua imagem refletida em milhares de espelhos, onde a imagem não era a dela, mas pequenos vermes que a fazem sangrar, beber de seu próprio sangue. Sufocam-lhe todos eles, quem dera poder se afastar, mas correr não lhe é permitido. As paredes caem e junto com elas esvai-se seu mundo, suas correntes lhe arrastam, lhe estrangulam.

Uma dor aguda a fez curvar-se, começava a perder os sentidos... o cálice que segurava até então caiu no chão... seu líquido vermelho manchava o tapete... aquilo não poderia ser licor... Catarina não suportava dor, isso lhe deixava feroz... a forte dor que começara em seu ventre já se expandia por todo seu corpo, forçando a ajoelha-se.
Demétrius estava agora de pé em sua frente, e não fazia menção de socorrê-la. Num misto de dor e ódio, a moça já então desfigurada pelo o que lhe atormentava, saltou para cima do desconhecido, lhe cravando as grandes garras no pescoço. Mas a dor tornou-se insuportável quando atingiu o alto da cabeça, e já sem forças, tombou desacordada.




Abria os olhos devagar...
Seja lá onde estivesse, estava frio. Seu corpo estava muito dolorido. O que haveria acontecido...? Aos poucos lembrou de um estranho... quanto tempo havia se passado desde que ele a havia tentado envenenar? Onde estava? Com o passar lento dos minutos, sua visão foi se acostumando com a escuridão, e já podia divisar algumas formas...
A porta da alcova foi aberta, por um homem muito alto, que trazia consigo uma lamparina. Na tentativa de defender-se, Catarina encolheu-se como pôde no canto da cama. Pondo a lamparina a um canto, o homem manteve-se de pé.

_ Não se assuste comigo. Já conseguiu lembrar de mim?
_ E como poderia esquecer daquele que tentou me envenenar, Demétrius, seu maldito?!

_Ora, o que vemos aqui? Onde estão as suas maneiras? Não sabe se dirigir a um cavalheiro?
_...
_ Não tentei envenená-la. Do contrário, não estaríamos conversando nesse instante. Naquele cálice, havia um ingrediente... misturado ao meu sangue. Bebendo-o, você se tornou minha. Está sob minhas ordens... e pertencendo a mim, não poderá me atacar como tentou da última vez... ou não recorda?
_ ...
_ Com o tempo você entenderá tudo... não temos pressa alguma. Mas agora quero-a forte. Afinal, não temos muito tempo, e precisaremos domar sua besta, para que nos sirva de modo satisfatório.

_ Me deixe sair daqui.
_ Ainda não. Só sairá daqui quando estiver pronta para me servir. Por enquanto está fraca demais até para levantar-se.
_... Não... me substime...
_ Mas é justamente por não lhe subestimar que por hora a manterei aqui.

Vários dias passaram até que Demétrius veio buscá-la, para em seguida, joga-la numa cela fria e fétida, nos porões de seu castelo. Catarina começava a perder a razão, não sabia a diferença entre os dias e as noites, e por mais que tentasse entender, menos chegava a uma conclusão de tudo aquilo. Na cela haviam seres... que não sabia como chamar... faziam estranhos ruídos... eram magros demais, vestiam farrapos, tinham os braços longos demais em relação ao resto do corpo, as bocas grandes, escancaradas, deixando a mostra os caninos pontiagudos e anormalmente grandes, a pele era ressequida e cinzenta... haviam três desses, e um, encolhido num canto da cela, destroçava uma ratazana que tivera a desventura de passar por ali. Estavam eles a brigar pelo roedor, quando Demétrius chegou acompanhado da jovem, que foi deixada entre eles, e que se agarrava ás barras de ferro, implorando para que ele não a deixasse ali.
Ao perceberem que o homem se afastava, os seres saltaram sobre
Catarina. Ouviam-se seus gritos de pavor por todos os corredores, misturados aos gritos das bestas encerradas com ela no mesmo cárcere. E de repente fez-se o silêncio.
A apenas alguns metros dali, Demétrius assistia à cena bizarra, de uma linda mulher transformar-se em uma fera incontrolável. Impassível, acompanhou cada segundo. Catarina transfigurou-se, e com uma força sobrenatural esquartejou com suas próprias mãos, as três bestas, deixando uma poça de sangue fétido ao seu redor, misturados a pedaços dilacerados dos corpos. De um golpe arrancou as grades da cela, e correu para seu dono, agarrando-o pelo pescoço e prendendo-o contra a parede. Mesmo transformada, Acsínya, possuía aquela beleza sobrenatural, hipnotizante.
Encarando-o nos olhos, aproximou o rosto do homem ao seu de forma ameaçadora, e sussurrrou:
_Nunca mais faça isso...
Em seguida, colocou-o de volta ao chão.
_Claro que não farei, isso não será mais necessário... afinal, acaba de ficar pronta para o que quero de você. Chamar-se-á a partir deste momento, Acsínya.