domingo, 4 de julho de 2010

Delirio

Talvez soubesse onde ir, se a tristeza não lhe ensopasse os pensamentos com lembranças tristes. Pela janela do ônibus, via a paisagem corrediça desfazer-se em borrões. O vento desmanchava seu cabelo, mas nada sentia. Não podia sentir. Seu coração latejava de dor, e toda a sua atenção era pra ele. Desceu há algumas quadras de casa, caminhou lentamente até seu portão, entrou e trancou-se no quarto. Pensou que não sairia mais de lá. Deitou-se na cama e permaneceu imóvel durante muitos anos.
As traças roeram-lhe as vestes, e os vermes sua pele e entranhas. Até que eles mesmos pereceram, sobrando os ossos e os cabelos.
E muitos, muitos anos depois, despertou do longo sono. O esqueleto acordou bem disposto: não lembrava mais do motivo de haver dormido tão triste. Não recordava seu nome, nem seu sexo. E teria se contemplado no espelho, se em suas órbitas houvessem olhos. Com uma escova muito antiga penteou os ralos fios que enfeitavam o frio crânio, passou mais algum tempo sentado na penteadeira, até que encontrou um pensamento e saiu de casa.
As ruas vazias susurraram que não havia ninguém a quem fazer perguntas, e a caveira continuou seu passeio até encontrar dúzias de cachorros-caveiras amontoados numa praça. Apenas um o acompanhou na jornada.
Chegou aos limites da cidade, e não encontrou absolutamente ninguém: alma viva ou morta.
Parou para pensar no absurdo de estar numa cidade vazia. Tentou entender como seria possível estar ali, sozinho, apenas na companhia de um cachorro-caveira. Foi então que percebeu, que ele próprio caveira era.
A realidade, com sua lógica implacável, emudeceu os pensamentos do crânio de órbitas vazias. E o limite do delírio desintegrou rapidamente a caveira, os cães de ossos, e por fim, a cidade inteira, transformando a vil matéria em irreparável pó, infértil, seco. E dos quatro pontos cardeais os ventos de fúria varreram as areias e uma temível tempestade lavou todas as idéias.
Sobraram apenas a caneta na mão da escritora, cuja mente inquieta se encontra perdida no deserto de ilusões.